Pequeno Roteiro na África Imensa — I
Histórias brasileiras no curso primário, em Gana.

O roteiro cumprido na África Ocidental foi cheio de surpresas:
o esforço de Gana para se industrializar, lutando contra o preço elevado de
alimentos e produtos acabados que necessita importar, bem como contra os preços
que o mercado internacional impõe para suas matérias primas. Em Gana um olho
atento para o Brasil, pois nossa experiência, em termos de tecnologia tropical,
muito lhes interessa. Este mesmo interesse me faz encontrar numa livraria de
Acra, a capital do país, um livro para escolas primárias, intitulado: “Akosua
in Brazil”. Pequena brochura de 48 páginas, escrita pelos professores Olympio
e Cecile McHardy, conta as aventuras do menino Akosua e seu ratinho GeePee,
numa longa viagem pelo Brasil. Akosua e GeePee, guiados por um gaúcho, têm encontro
com as coisas marcantes do Brasil, mas devotam em especial seu interesse para
a Bahia, onde encontraram um brasileiro com nome de Nana Alikali, descendente
de africanos, que lhes contou as belas histórias e crenças cujas origens ligam
tão estreitamente as culturas brasileiras e ganense. Em verdade, Pelé à parte,
não somos ainda conhecidos, apesar do esforço que o Itamarati desenvolve para
divulgar o Brasil na África. No caminho das surpresas, a seguir, Costa do Marfim,
com sua capital Abidjan, com justiça chamada “Riviera Africana”, pontilhada
de arranha-céus, viadutos, universidades, cinemas climatizados, riqueza ostensiva
e pobreza discreta. Em Abidjan o Hotel D’Ivoire, com diária, para dormir, de
50 dólares. Após, a República do Cabo Verde, um arquipélago a 500 quilômetros
ao largo de Dacar. Aí, seguramente, a maior surpresa de todo o roteiro: um pequeno
país, independente há menos de um ano, ex-colônia portuguesa. Sua formação étnica
é, praticamente, igual à do Brasil: portugueses que se misturaram com escravos
destinados às Américas, oriundos da Guiné, do Senegal e países da África Ocidental.
No Cabo Verde, portanto, toda a semelhança com o Brasil nunca será mera coincidência.
Com pequenas modificações, pelo menos dois gêneros musicais brasileiros são
parecidos com os do Cabo Verde: a norna, semelhante ao nosso samba-canção e,
a coladeira, rigorosamente igual ao chorinho. É bom esclarecer que nem Brasil,
nem Cabo Verde mantêm laços tão estreitos que tivessem assegurado a um ou outro
assimilar o estilo musical. Quer parecer que, espontaneamente, o gênero musical
evoluiu, num e noutro país, naturalmente, como conseqüência da mesma origem
e do mesmo tipo de mistura racial. Doutra parte, estimulante é o carinho que
os caboverdianos devotam aos brasileiros: safei-me, graças a isto, de grave
emergência, quando, sozinho, sem malas, sem lugar para dormir, cheguei à Ilha
do Sal, sem qualquer possibilidade de retorno, a não ser no dia seguinte. Após
o Cabo Verde, a Guiné-Bissau, ou antiga Guiné Portuguesa. Seguramente o exemplo
mais patético de malefício do colonialismo: 500 anos de ocupação e hoje um país
sem sequer uma escola superior. Com uma população de 550.000 habitantes, tem
17 mil alunos no primário e 1.000 no secundário! Para importações (via Portugal)
da ordem de 791 milhões de escudos, exporta, apenas 66 milhões de escudos, também
para ou via Portugal (fonte: Societé Africaine D’Édition, 1975).
Descendo a África
A viagem se iniciou em Dacar. Apenas ficaria ali o tempo
necessário para rever alguns amigos, enquanto esperava o vôo da Ghana Airways,
tendo como destino a antiga Costa do Ouro. Dois dias após estar no Senegal,
num DC-8 da companhia ganense foi iniciada a jornada em direção ao interior
da África Negra. A viagem se iniciou às 9 horas da manhã e terminou às 17 horas.
Em verdade a distância não era tão expressiva, nem o avião era de baixa velocidade.
Sucede que o número de escalas e a demora em cada aeroporto tornou mais difícil.
Assim, mal o grande avião ergueu-se em Dacar, 30 minutos após já descia em Banjul,
capital da pequena República de Gâmbia, um encrave com fala inglesa, dentro
do Senegal. Daí sobrevoaríamos os territórios das Guiné, Bissau e Sékou Touré,
este nome lembrando o atual presidente e líder da independência, ocorrida em
2 de outubro de 1958. Saídos de Banjul, pois, descemos a seguir em Freetown,
capital de Serra Leoa. Num outro pulo, com poucos minutos de vôo, chegaríamos
a Monróvia, capital da Libéria. Este país, independente desde o século passado,
em 1847 é a colônia que os ex-escravos norte-americanos, que conseguiram deixar
aquele país, fundaram em seu continente de origem. Na Libéria, o ponto de encontro
dos milionários negros norte-americanos, que vão e voltam constantemente, em
turismo de evocação às origens. Quando de meu regresso tive de permanecer longo
tempo no aeroporto de Monróvia, pois vinha num vôo especial da Air Afrique em
combinação com a Pan-Am. Conversei longamente com uma jovem americana, que narrou-me
as razões da viagem sentimental de seus pais à Libéria. Eles, fazendeiros e
criadores de gado no sul dos Estados Unidos, são descendentes de um ramo de
ex-escravos, dos quais um grupo enfrentou o Atlântico de volta, para se estabelecer
na Terra da Liberdade. Na Libéria existe o dólar liberiano, mas a moeda de circulação
corrente no país é o dólar americano, que tem paridade com o liberiano. De Monróvia
seguimos para Abidjan, na Costa do Marfim, e daí aportamos em Gana, após oito
horas entre viagens e paradas em aeroportos. A demora e a desconexão de vôos
em Dacar faz com que, com acréscimo de quase 200 dólares, empresários ganenses
prefiram ir direto do Rio a Londres e daí, também direto, para Gana.
Cuidar as versões
Logo após deixar o aeroporto de Banjul, em Gâmbia, deixei
de estar sozinho. Mais do que isto, assumia a tutela de um brasileiro, funcionário
da agencia São Paulo do Banco de Boston, que tivera sua mala enviada por engano,
do Rio de Janeiro para Frankfurt, ao invés de Dacar. Viajava, como eu, para
Gana, porem, apenas com a roupa do grupo, umas garrafas de uísque, documentos
e dinheiro. O conheci quando envolvido em complicação a bordo. Fizera um gracejo,
absolutamente inocente, após haver fotografado duas comissárias de bordo, cuja
versão para o inglês gerou dissabor. Lá estava ele às voltas para explicar para
as jovens e também para o chefe das comissárias, porque “se sua mulher visse
a fotografia que tirara, ela o iria matar!”. Portanto, como não teve cuidado
ao verter do português para o inglês, viu-se em maus lençóis. Contornado o incidente,
a solidariedade brasileira se estendeu por todo o itinerário, especialmente
quando fui informado de que, indo para um país de hábitos ingleses, não tomara
a precaução de reservar acomodações num hotel. Juntando todos os imprevistos,
o jovem executivo estava literalmente arrasado. Mas o trajeto era longo e a
solidariedade imensa. A cada instante ele mais e mais depositava oferendas ao
altar do “jeitinho brasileiro”. Afinal, se eu tinha reserva num hotel ele não
ficaria a dormir sob uma ponte qualquer...
Na terra de Nkrumah
Chegamos a Acra, com seu moderno aeroporto Kotoca, esperançosos
de bons negócios convictos de uma boa hospitalidade. E tudo correspondeu ao
desejado ardentemente. No aeroporto a vontade de ajudar aos estrangeiros. Daí
para a Embaixada do Brasil, onde o embaixador Lyle Tarisse da Fontoura recebeu-nos
individualmente e, numa palestra superior a 2 horas, demonstrou todo o seu interesse
em colaborar e colocou a máquina administrativa da Embaixada a nossa disposição.
Daí para o Hotel Meridien, na vizinha cidade de Tema, 24 milhas de Acra, onde
fiquei no apartamento 510 e o Moacir, do Banco de Boston, no 505. E para que
não andasse fazendo má figura, ficou com uma de minhas camisas. Estávamos na
terra de Kwame Nkrumah, falecido líder da independência e responsável pela explosão
do progresso que Gana teve, em seu alvorecer como estado soberano. Grandes obras
que ainda hoje enchem de orgulho os ganenses se devem a Nkrumah, seguramente
um dos nomes que mais apareceram nos jornais, nos idos de 1957, quando a África
transpirava independência. Assim, a cidade de Tema e seu porto marítimo; o complexo
hidrelétrico do rio Volta, que abastece o país e tem energia exportada para
o Togo, o Dohomey e Alto Volta; a rede estatal de hotéis de luxo, onde se incluem
o Meridien e outros; uma moderna auto-estrada, que liga Tema a Acra, além da
Universidade de Kumasi, no interior do país, são realizações pioneiras de Nkrumah.
Ashantis e tradição
Gana dá muita importância as suas raízes históricas. Descendentes
do antigo Império de Gana, que se teria localizado na região norte da África,
onde estão hoje o Senegal, o Mali, a Mauritânia e o Níger, os ganenses fazem
por preservar, especialmente na região de Kumasi, onde estão os Ashantis, a
tradição milenar que tem passado de geração em geração. Foram os Ashantis formidáveis
guerreiros, deixando ao longo dos séculos uma legenda de heroísmo na luta contra
os colonizadores. De seus símbolos é o mais significativo o Banco de Ouro, onde
o Chefe toma assento. No banco, diz a tradição, está guardada a alma dos ancestrais.
E, enquanto o banco se mantinha a salvo dos invasores, sempre havia um motivo
porquê lutar. Em toda Gana de hoje a tradição tem peso e valor inegáveis. No
Direito Civil, as normas que regulam a sucessão, a aquisição da propriedade,
as obrigações em geral — cada instituição estará vinculada a um direito consuetudinário.
Aliás, sendo a base do direito inglês, também costumeira, o amalgamento ter-se-ia
dado com mais facilidade. E, em meio a este universo de tradições e ritos, surge
como líder inconteste, como semidivindade, o Chefe Paramount, com os subchefes
e toda uma corte que os servem. Ainda hoje, para adquirir-se um pedaço de terra,
a palavra, o consenso do chefe será elemento de validade na operação. A morte
e o funeral do chefe seguem um rito tão fechado ao qual uns poucos têm acesso.
Assisti, quando da inauguração da Feira de Gana, a um pequeno detalhe que chamou
minha atenção: o General Ignacius Acheampong, chefe de Estado e comandante supremo
da Revolução, dirigiu-se a uma tenda multicolorida onde estavam vários chefes.
Chegou, então, ante ao que pareceu ser o mais velho ou o mais importante deles
e, reverenciosamente, o cumprimentou. Enquanto Acheampong curvava-se para saudar
o chefe, este aceitava o cumprimento, porem, mantinha-se sentado.
O Gana de hoje
Em meio a tantas tradições, algumas das quais chegam a se
constituir em entraves para o chamado progresso, Gana demonstra sério interesse
em se industrializar. Como muitos países do chamado III Mundo, tem sérios problemas
de divisas, pois necessita importar alimentos e produtos industrializados e,
em contrapartida está a mercê das oscilações das matérias primas, especialmente
o cacau, responsável número um pelas divisas estrangeiras que lá chegam. A grande
Acra (Acra e Tema) tem hoje uma população de 1.200 mil habitantes. As outras
cidades importantes são: Kumasi (345 mil), Sekondi-Takoradi (outro porto, com
165 mil) e Cope Cast (45.000 habitantes). Gana possui 20.000 homens em armas
(Exército, Marinha e Aeronáutica), além de outros 10.000 que formam as forças
internas de segurança. Sua moeda é o Cedi, que vale cerca de 0,90 de dólar americano.
Gana conseguiu no último exercício financeiros exportações da ordem de 570 milhões
de cedis e fez importações no montante de 396,2 milhões de cedis, logrando um
superávit na sua balança de comércio exterior. Seus principais clientes são
o Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha Federal e Japão.
Slogans e objetivos
O atual governo de Gana tem-se valido de modernos meios promocionais
para atingir objetivos que considera como inarredáveis, para lograr metas fundamentais.
Assim, em cada recanto do país pode-se encontrar o slogan: Uma Nação, Um Povo,
Um Destino. É o esforço de superação de um problema muito comum nos estados
africanos: a divisão fictícia de fronteiras, com a aglutinação de etnias, muitas
vezes, tradicionalmente inimigas; ou no oposto, grupos historicamente unidos,
separados pelas linhas de fronteiras. Embora bem menor seja o problema em Gana,
onde se encontram, apenas, seis etnias (Akans, Fantis, Guans, Ewes, Ga-Adangbes
e Ashantis), o governo deseja integrar todos no processo de desenvolvimento
do país. Em verdade, Gana emprega em educação, per capita, mais do que a maioria
dos países africanos, o que lhe assegura 10.268 escolas de primeiro e segundo
graus. Conta com 3 universidades e 15 institutos técnicos e cerca de 2.500 estudantes
se encontram presentemente em universidades do Reino Unido e da América. A Independência
e os anos subseqüentes não apanharam Gana despreparado. Mesmo uma intensa atividade
política, com respaldo de um parlamento nativo anterior mesmo a 1957, tornou
viável uma elite dirigente capaz de fazer o país trilhar por caminhos mais seguros.
E Kwame Nkrumah foi o exemplo mais brilhante.