Histórias Africanas.
José Luiz P. da Costa

Louis Rwagasoré. |
"Os antigos reinos do golfo da Guiné
foram pisoteados pela legião estrangeira, pelos regimentos da guarda inglesa,
pelas colunas de Bismarck. Seus cadáveres foram esquartejados e os membros
distribuídos entre os delegados da conferência de Berlim (1885). Em contraposição,
no Burundi (assim como mo Ruanda, no Buganda etc.) uma etiqueta escrupulosamente
respeitada pelos dois lados presidiu durante toda a ocupação ao diálogo
entre os invasores e o rei autóctone. Não se poderia portanto comparar
a construção reivindicatória de um Estado Nacional em qualquer dos países
da áfrica do Oeste, com a permanência por assim dizer inalterada dos reinos
da África oriental e central os quais, idênticos a si mesmos, recuperaram
a plenitude de sua soberania política após um período de apenas cinqüenta
anos de ocupação. |
"Entre a luta pela independência nacional, encabeçada por
Kwame N'Krumah e as ocasionais astúcias dos líderes burundi desejosos de acelerar
a retirada dos paraquedistas belgas, só existe um longínquo parentesco. O Gana
contemporâneo nasce com a independência enquanto o reino do Burundi se livra
de alguns incômodos ocupantes. Não obstante, no Burundi, o período medeante
entre as primeiras negociações em 1958 e o ano de 1962, data da independência,
é interessante por dois aspectos: é o período em que surgem os primeiros partidos
políticos e no qual se instaura uma ordem constitucional escrita. "No dia 31
de dezembro de 1960, o regime colonial admitira nada menos que vinte e um partidos
(...). Dentre todos esses partidos políticos, o mais poderoso, o melhor estruturado,
assim como o mais complexo era o UPRONA. Surgira no cenário murundi como a chama
escarlate de uma explosão de grisu. Ódios, aspirações, sede de dignidade e esperanças
íntimas, desmedidas e violentas, recalcadas a gerações nas profundezas mais
recônditas da consciência murundi explodiram bruscamente no torvelinho de vontade
libertadora que foi o UPRONA. O inspirador e criador do partido foi Louis Rwagasoré,
filho do rei Mwambutsa IV. Rwagasoré contava 28 anos em 1960. Era um homem de
imponente estatura, de rosto largo e simpático, dotado de invulgar inteligência,
mesmo para os Burundi. Tal como Lumumba, pressentiu confusamente a necessidade
de um partido unificador transtribal. Ainda como Lumumba, correu um risco calculado
ao rejeitar todas as alianças tribais, e todo o apelo às etnias. Depois da vitória
atual dos movimentos nacionalistas e destribalizados que se afirmaram mais ou
menos por toda a África negra, dificilmente se pode avaliar a coragem política
e pessoal de homens como Rwagasoré e Lumumba. Ainda mais que Lumumba, Rwagasoré
personifica a livre escolha de um líder político a favor de um populismo nacionalista.
Sobre Lumumba pesavam todas as taras, todos os complexos de um nacionalismo
colonial. fora espezinhado por inúmeros funcionários coloniais, desprezado em
Kishangani e quando, ao cabo de uma série de cartas rogatórias e de humilhantes
intrigas, conseguiu obter um cartão de registro (o qual lhe dava teoricamente
direitos idênticos aos dos brancos), conheceu um tipo de discriminação mais
sutil e ainda mais doloroso. Seu isolamento se tornou então completo: separado
do povo negro por sua condição de "evoluído", rejeitado pela imensa maioria
dos brancos, Lumumba não passava afinal de um escalão intermediário na hierarquia
do desprezo. Conheceu a prisão, seus partidários foram muitas vezes mortos (...)
ele se fechava em seu quarto. À luz de uma vela, estragava a vista em leituras
de edições baratas, mil vezes passadas de mão negra em mão negra. Lia Robespierre,
Rousseau, Babeuf e Marx. "O destino de Rwagasoré foi muito diferente. Rwagasoré
era príncipe. Tinha dinheiro. Possuía uma sólida formação intelectual. Quando
viajava, os homens o acolhiam. Quando exigia ou ordenava, os brancos refletiam
e os Burundi obedeciam". O confronto de dois tipos nítidos e específicos de
formação social dentro da África negra está no livro de Jean Ziégler, "O Poder
Africano" e, na mesma obra se obtém uma série de informações cientificamente
colhidas e dispostas, ensejando ter-se uma melhor compreensão do momento atual
na África. Apenas sua leitura, ou uma cuidada busca a centena de obras que por
ele são citadas, pode assegurar, desde logo, um exame menos apaixonado de situações
como a derrubada do general Yakubo Gowon, da presidência da Nigéria; a reunião
em Kampala, capital de Uganda, da Organização da Unidade Africana e a escolha
da figura controversa do marechal-de-campo Idi Amin Dada para seu presidente.
OS INTOCADOS.
Na mesma obra (edição Difusão Européia do Livro, 1971) o
sociólogo, procurando situar com precisão a figura do homem africano, o menos
possível contaminado por valores alienígenas, da enfoque ao reino Burundi. E
diz: "Politicamente, este reino é notável devido a sua organização específica
e ao número de súditos nele, englobados. Apresenta além disto uma característica
única na África: o Burundi, surgido num momento qualquer do século XVII, resistiu
aos exércitos do sultão de Zanzibar, combateu os caçadores de escravos, sobreviveu
à conquista colonial, aguentou os colonizadores alemães, e depois os belgas,
conquistando finalmente a independência sem que seu organismo político sofresse
alterações qualitativas de monta (nota: esta permanência do ser social não foi
afetada pela intensa evangelização do país. Quanto ao rei, este sempre recusou
o batismo).
SUICÍDIO RITUAL.
Ainda na mesma obra, no exame mais geral dos chamados reinos
da África Central, ao observador inteligente outro caminho se abre para o entendimento
de certos fatos. Diz o sociólogo: "Nesse universo de violência e de insana crueldade
que há poucos anos atrás ainda constituíam os reinos da África Central, os mecanismos
de sucessão eram presididos por uma regra elementar: o rei deve desaparecer
assim que o príncipe herdeiro atinge a idade de homem. Esta regra é taxativa.
E parece que ainda hoje o é. Dois exemplos: no tempo da tutela belga, Mutara,
rei do Ruanda, convocou seus chefes em Bujumbura. Reuniu um último conselho
nos jardins do Hotel Paquidas: em seguida, assistido por seus pares, ingeriu
o conteúdo de uma garrafa de cerveja invenenada. Morreu algumas mais tarde,
algumas centenas de metros adiante, num leito de hospital de Bujumbura, sempre
cercado por deus chefes silenciosos e impassíveis. Estes, a seguir, encaminharam-se
para o palácio do governador a fim de lhe comunicar o suicídio do rei. Foi então
enviado um telegrama à rainha-mãe, em Gitarama. Uma testemunha que se encontrava
ao lado dela no momento da recepção da mensagem que comunicava a morte de seu
filho, declara que sua reação se resumiu às seguintes palavras: "Ele se decidiu,
finalmente". A mesma regra quase custou a vida ao rei Mwambutsa IV, penúltimo
rei do Burundi. Apesar de já haver o príncipe-herdeiro Charles atingido a idade
de dezenove anos, Mwambutsa resusou afastar-se. Uma parte do exército atacou
seu palácio durante a noite de 28 para 29 de outubro de 1965. Mwambutsa escapou
mas o príncipe Charles assumiu o poder alguns meses mais tarde. "Os reis do
Burundi, sujeitos a esta regra cruel, procuravam conseguir de maneira muito
natural, que os sábios que os sábios encarregados de apontar dentre seus numerosos
filhos aquele que haveria de ser o herdeiro do trono designassem o mais jovem".
Assim se explica o fato de um rei governar muitas vezes durante trinta ou quarenta
anos. Mwambutsa, por exemplo, comemorava cinqüenta anos de reinado em 1966".
Inserindo nesse fragmento do universo africano, com valores, ainda que superficialmente
mudados aqui e ali pela dominação colonial, a reunião de Kampala não autoriza
se transfira como decisão mais importante a escolha do marechal-de-campo Idi
Amin Dada, como presidente no próximo período anual de sessões, da Organização
da Unidade Africana e, muito menos, fazer crer seja pensamento de todos os presidentes
ou chefes de delegações, a concepção pessoal daquele chefe-de-Estado, quanto
aos judeus (Alfred Métraux, descrevendo a deportação no Haiti, considerou paradoxalmente
que o advento de Hitler e de seus carrascos de camisa parda representou uma
oportunidade para a consciência européia: somente Buschenwald e a loucura nazista
poderiam fazer com que os europeus chegassem a compreender o horror que haviam
imposto aos africanos), por uma simples questão de capacidade de compreensão
da brutalidade do sofrimento. Entretanto seria absurdo pressupor que os representantes
da África negra independente se abstivessem de uma posição firme, onde se inclui
o boicote, aos regimes colonialistas da África do Sul e Rodésia. Aliás, burlado aqui
e ali, o boicote contra este último existe desde sua declaração unilateral de
independência. Por outro lado, parece que a impossibilidade política da África,
segundo padrões ocidentais, admite-se sempre que se visualizar o parâmetro esquecendo
a pouca distância que separa as jovens nações da opressão colonialista. E o
caminho para a obtenção de uma política nacional para cada Estado será mais
facilmente atingida com a existência da Organização da Unidade Africana, com
a discordância de seus membros em plenário, mesmo, como entidade, cometendo
erros; afinal, a ONU ainda os comete. No plenário da OUA, com a soma das experiências
sociais e políticas de cada um virá o caminho que buscam: uma África coesa,
capaz de fazer conviver os milhares de grupos étnicos que a formam. Desejo,
aliás, que se expressa, entre outras formas, simbolicamente na presença da cor
verde em todas as bandeiras nacionais dos países independentes.