CAÇAR UM VEADO...

Kofí, Kuakú e Boateng, três grandes amigos, resolveram caçar o veado.
Um dos três, ajudando-se mutuamente, poderia ser o grande vencedor do festival do ano,
disputando com outros jovens, também ambiciosos, a glória de trazer, para mostrar à sua comunidade,
um exemplar da família dos cervídeos, devidamente abatido.
De preferência, o mais bonito, com a mais imponente galhada.

1

O pai de Kofí já havia experimentado o sucesso de ter sido, fazia muito tempo, um grande vencedor. Ganhara uma vez e mais outras três seguidas. Era, portanto, para ele uma questão de orgulho de família tentar, pelo menos, seguir os passos do velho, seu pai. Bentum, agora chamado de velho, embora, apenas, nos seus quarenta e três anos, era muito admirado na pequena cidade, em verdade uma vila para os padrões de um país maior. Conhecido porque fora um rapaz cheio de vida, forte e bonito, no pico de sua juventude, era um simpático e alegre companheiro, sabendo bem fazer as coisas no momento certo. Quando era para namorar, fora ele, mais que ninguém, o disputado pelas moças de seu tempo. Fazia rir, sem ser um palhaço. Fazia-se desejar, assumindo posições que, romanticamente, as jovens esperam que os homens avoquem destemidamente, em certas situações, o que as encantava e seduzia, tornando aquele homem diferente dos demais. Mas, também, porque tinha ritmo. Em tudo. Jogava futebol, que aprenderam a chamar de soccer — e aí estava sua ginga maior. Todos vibravam, nas partidas de fim de semana, quando Bentum desarmava seus antagonistas ao, em penetrando com a bola na área inimiga, subitamente parar. Balouçar as cadeiras, voltar atrás, deixando-os desconcertados e indefesos, para reassumir a corrida, bola nos pés, livre da marcação e finalizar num gol, para o mais completo êxtase da torcida. Era esse mesmo ritmo que Bentum exibia, nos chás da paróquia, quando embalado por uma banda de metais, rebolava ao som de um highlife: ritmo marcantemente africano, que migrou com os escravos para o Caribe e evoluiu, em linha paralela a de seu ambiente nativo, nas ilhas da América Central, batizado como merengue, rumba, calipso etc. Na Costa, acolheu os instrumentos metálicos trazidos pelos colonizadores europeus. Virou highlife e Ewuraba Artificial era a sua musica predileta. Narrava a letra, em fante, a história cínica de uma mulher artificial, que se comprazia em destruir homens. — Não o Bentum, ‒ brincava entre amigos. De ritmo vivo e esfuziante, Ewuraba ensejava sua presença na banda, a marcar o ritmo com um agogô, instrumento em cuja execução era, verdadeiramente, um virtuose. Kofí, como frequentemente ocorre com os filhos, procurava imitar o pai. Tal qual ele, gostava e era bom no soccer, com a diferença de que chamava o jogo de football, como todos os seus amigos. O responsável pela mudança fora a imagem, idolatrada, de Pelé, por largo tempo um modelo para todos. Pelé esteve lá, lotou o Estádio Nacional, e milhares de jovens viram-se na pele escura, como a deles próprios, de seu ícone. Bentum, diferentemente, conta como seu orgulho maior um verdadeiro monumento nacional: Louis Armstrong. Satchmo, e seus All Stars, fez um show apoteótico na Praça da Independência. No evento, o congestionamento de chefes tribais, chegando em seus palanquins, carregados por servos, apoiados por abanadores e embalados por tocadores de atabaques, na apresentação única de Armstrong, inseriu se nas curiosidades do país. A presença dos governadores de todos os estados, todos os ministros, parlamentares, juízes, o rei Achanti e sua coorte, e o presidente da República, com familiares e amigos, obrigou os organizadores a montarem meio estádio de mordomias. Mas país que tinha ouro para pagar telhas de zinco não iria se preocupar com tais ninharias. As duas visitas, de Pelé e Louis Armstrong, ocorreram nos anos 70. Pai e filho — duas geração —, cada um buscou sua afinidade, ambos, todavia, convergindo para irmãos que, deportados no passado, na carne e espírito de seus ancestrais, retornavam à casa como vencedores do Novo Mundo. Ajudou, mais adiante, a consolidar a mudança de soccer para football a invasão de técnicos brasileiros que, na esteira de campeonatos mundiais e, especialmente, do tricampeonato, fizeram os novos, como Kofí, abandonarem o tal de soccer por futebol: em verdade, pouco mudou, afinal no campo eram a mesma coisa. Boateng, o mais velho e, inquestionavelmente, o mais forte dos três amigos, era introspectivo, do tipo de camarada que, quieto, é respeitado, e seu silêncio necessário, como algo que não se pode explicar. Talvez a íntima certeza de que, se algo de errado viesse a ocorrer, a força e a segurança daquele companheiro serviriam de resguardo, de proteção. Kuakú — o amigo do meio — não era o mais forte nem o mais brilhante, destacava-se em quase nada. Mas era um bom amigo. Preenchia espaços com suas limitações; com seus enganos; com certa inoportunidade. Compunha, apesar disso, como os outros dois, a massa com a qual era moldada a preciosa amizade que os unia. Eram inseparáveis, desde tempos que se perdem na cronologia de suas jovens vidas, como meninos que cresceram juntos na mesma vila. Tinham pais amigos entre si. Irão se casar com irmãs ou primas comuns. Terão filhos que serão também amigos. Apenas a eventual ida para cidades maiores, para cursos de ensino técnico ou superior, poderá quebrar essa roda do destino. Poderá, mas não necessariamente o fará, posto que dos hábitos mais arraigados entre esses jovens, que vão estudar nas cidades maiores, é um total apego às suas raízes. Em Gana, tanto as universidades quanto as escolas politécnicas, são pensionatos, onde, como na metrópole inglesa que lhes serviu de modelo, os alunos se internam no início do ano letivo e, muitos deles, somente voltam para casa nas férias. Esse fator talvez marque a compulsão que têm de, já profissionais, residentes nos centros urbanos maiores, frequentemente voltarem ao hometown. Também os impelem a retornar com frequência, na linha das obrigações irrecusáveis para com a vila natal, os rituais da morte, do casamento e do nascimento, nessa ordem de importância. Outro fator de grande peso para esse constante voltar à casa é a língua: na universidade manipulam um cadinho de dialetos entre os colegas. É rotineiro, para falarem entre si, usarem como ponte o idioma deixado pelo colonizador, o Inglês. Em casa, na vila, não, todos falam o mesmo dialeto.

2

Boateng expôs seu plano ao pai, outro velho prematuro, pois na casa dos quarenta e cinco. Sairiam para o mato às quatro horas da manhã, bem antes do sol começar a nascer. O ponto considerado ideal, onde animais de médio porte costumam pernoitar, ou aplacar sua sede, ficava a boa distância da vila, e esta haveria de ser percorrida caminhando. Correndo, quem sabe, se algo imprevisto ocorresse. Cobriria, com Kuakú, a rota da choupana da velha. Kofí marcharia sozinho por outro flanco, a uma distância razoável que, numa emergência, pudesse ser socorrido. A cabana da velha, ponto de partida, era construída em blocos de cimento, sem reboco ou qualquer pintura, e telhas de zinco. Perdida no início da savana, possuía peculiar plantação de ervas, com as quais resolvia mazelas do corpo e espírito dos que a procuravam. Em seu interior, poucas vezes alcançado por intrusos, algumas ocasiões receptáculo de pessoas desesperadas, havia, em destaque, um banco. De desenho comum aos tronos quase sempre presentes nas residências achantis — consta que estão ali guardadas as almas dos antepassados de cada família. Os ascendentes, quando adequadamente chamados, com a experiência que a alma adquiriu, quase sempre têm condições de encontrarem a solução para os problemas apresentados. O trono, era o destaque maior entre outras utilidades, estas comuns às casas de nação do Brasil e shrines dos Estados Unidos. A cabana revelava, também, curiosa imposição colonial: o país não tinha uma olaria industrial sequer para usar o barro disponível e produzir seus tijolos. Existiam betoneiras novas e velhas, funcionando ou não, por toda parte, onde — com o cimento importado da Europa, adicionando a areia local — faziam blocos, cada vez mais fracos, pela necessidade de usarem, num crescendo, mais areia e menos cimento. Cobriam as casas sempre enferrujadas telhas de zinco. Caras e difíceis de encontrar, especialmente no interior, vinham, como o cimento, também da matriz, que jamais fez por produzir localmente tão banais itens. Eram trocados por ouro, diamantes, cacau e madeira. Enquanto Boateng, medindo as palavras, bem a seu estilo, expunha ao pai a estratégia da caça ao veado, marcando o ponto inicial de sua engenharia para encurralar o animal, facilitando ao Kofí, por certo, a conquista, Boateng, sênior, perdeu-se numa divagação relacionada com a casa da velha. Kofí, Boateng, Kuakú e outros jovens viam a cabana de uma forma. Boateng, pai, de outra. A mesma visão que tinham Bentum e os demais de sua geração. Ao fundo da casa da velha Akosua, havia uma laje de grandes dimensões, que, seguramente, encobria algo. Seus contemporâneos, meninos de um país ainda colônia, não ousaram desobedecer regras rígidas quanto a qualquer tentativa de romper o segredo. Corria, assim, à solta, a lenda: Em tempos do antigo Império de Ghana, quando o rei estava por morrer, construíam uma enorme abóbada, quase sempre em madeira. Morto o rei, pronta a edificação, traziam seu corpo, que era recoberto com panos e tapetes. A seu lado depositavam todos os seus ornamentos, as suas armas, copos e jarros, bem como diversos tipos de bebidas e estoque de comida, segundo suas preferências em vida. Eram também sepultados os escravos, que lhe serviam as refeições, estes vivos. A porta do mausoléu era então fechada, em grande triunfo e festa. A multidão, em ato contínuo, iniciava o trabalho de cobertura da redoma. Milhares de súditos traziam terra e, com grande eficiência, iam espalhando-a em volta do mausoléu, até que todo ele e, principalmente, as portas de entrada ficassem cobertas, impossibilitando o acesso a seu interior. A casa da velha Akosua estaria, em parte, sobre um antigo mausoléu achanti. Todos na vila assim pensavam. A divagação dissipou-se por um instante e ele concordou com certo detalhe da caçada, como lhe expunha o filho. Foi como um piscar de olhos. Voltou a ser menino, junto com Bentum, preocupados com a possibilidade de, eles, serem enterrados vivos na tumba real, ao fundo da casa da velha. Os valores mudaram, pensou: grande honra era, diziam os antigos, ser enterrado com o rei. Importante hoje é viver e lutar por coisas do dia-a-dia, pelo futuro dos filhos e do país. Grande honra era recolher a saliva real e espargi-la pelo corpo. Conquista de valor é, nos dias de hoje, conseguir associar o rei a campanhas de melhoria social do povo. — Muito bem, confirmou Boateng, sênior, acho que tudo vai dar certo. Não esquece do apito e do agogô. Assim foi.

3

Noite ainda, os três marchavam confiantes no sucesso da empreitada. Outros jovens da vila pensavam da mesma forma e haviam acordado também cedo, para tentarem semelhante aventura: trazerem, ao fim da manhã, um belo exemplar de veado. Kofí, o mais agitado, cobrou de Boateng e Kuakú os apetrechos necessários à caçada. Lá estava tudo, que, em verdade, não era muito. Bastante, imensa era a coragem, a vontade de vencer o desafio. Kuakú perguntou se Bentum, o ídolo do passado, havia cooperado, dando algumas instruções especiais para Kofí. Boateng, quieto, movendo-se como que com a dificuldade do peso e do tamanho, menosprezava as indagações de Kuakú. ***pg.70 Os três amigos, simultaneamente, olham para trás e vêem a vila ficando na distância, perdida nas luzes trêmulas das ruas — uma delas a sempre presente Main Street — que partem em direção ao seu modesto downtown. Caminham firme, sem correr. Embrenham-se na savana, com nada mais do que os sonhos e a intrepidez, além de cordas e instrumentos de percussão. Uma grande lua, como que companheira de sua aventura, ilumina, com tons argentinos, ensejando sombras esparramadas, o caminho da trinca. Ali, podem materializar-se, a qualquer momento, belas e fujonas gazelas; macaquinhos intrometidos; elefantes depredadores de pequenas fazendas; irascíveis zebras; sempre traiçoeiras e perigosas onças; deslumbradas girafas; sonolentos leões e terríveis leoas. Mas, também, veados. E a figura de um lindo animal, galhada nobre e perfeita, esquivo e veloz, era a imagem que ocupava, em toda extensão, os pensamentos de Kofí. Boateng lembrou, no silêncio apenas quebrado pelo farfalhar das folhas ressecadas que pisava, Akosya. Ela havia pensado nele, naquele instante, revirando-se na cama, insone, preocupada, não com a aventura do namorado. Tampouco com a afoiteza do irmão Kofí. Isto era parte da vida. Seu pai, como seu avô, fizeram o mesmo. Já perdera amigos destroçados por animais ferozes. A savana tinha seu perigo. Sua lei, despida de qualquer impunidade. Mas a vida é toda perigosa. No cerrado, pensou Akosya, de certa forma, tudo estava previsto. Não estava, não, a ida de Boateng para o Canadá. Ele havia concluído sua formação na Escola Politécnica de Kumasi. Preparava-se, agora, para desfrutar o ensino superior no Canadá. Sabiam que o país de destino era muito frio, com neve e temperaturas inimagináveis para eles. Lembrou-se de histórias não muito antigas das prostitutas russas de Gana: mulheres que se apaixonaram e casaram com jovens estudantes da Universidade Patrice Lumumba, e que, com eles, quando concluíram seus estudos, migraram para a terra dos maridos. Outras vieram, imediatamente após a Independência, com engenheiros russos, que trabalharam na construção de grandes obras. Romperam com maridos; apaixonaram-se por contrastantes, buliçosos, alegres e quentes homens do equador. Brutal choque cultural se instaurou e, praticamente todas, abandonadas, repelidas ou, elas próprias, rompendo os casamentos, tornaram-se meretrizes. Pela língua comum, hábitos e cultura, enfim, se aglomeraram numa área que passou a ser a zona das marafonas russas. Akosya pensou: Boateng voltaria casado, após quatro anos, com uma canadense sem cor, cabelos de espiga de milho e cheirando mal? Bentum, o pai, estivera também no Canadá. Fora um sucesso entre as louras e as morenas. Diziam até que ela tinha meio irmãos mistos lá no frio. Se houver de ser com Boateng como fora com o pai, remoeu Akosya, tudo estaria muito bem. Afinal, ele passou quatro anos no Canadá. Voltou como engenheiro de minas. Casou-se com a antiga namorada, sua mãe. Tornou-se, logo no pós Independência, o mais jovem diretor da estatal que cuidava da exploração, beneficiamento e exportação de diamantes de seu país. Diferentemente de Akosya, Yaa Caroline — com nome europeu, homenagem, quem sabe, nunca revelada, de Bentum a alguma canadense especial — dormia sem qualquer preocupação com a caçada do irmão, do futuro cunhado e do amigo Kuakú. Nos seus 16 anos, iria tratar, quando acordasse, como fizera ao adormecer, do festival da colheita, da fertilidade, que era o gerador dos sucessos que iriam ocorrer naquele dia. Da caça ao veado, à entrada triunfal, a cavalo, do vencedor, aos ritos de iniciação, além da apoteose final, tudo se devia ao fato maior: a colheita havia sido bendita. Chovera no momento próprio e haveria, este ano, inhame, para dar consistência à tradicional sopa de amendoim; banana-da-terra, para, no pilão, preparar o generoso fufu, ou, assada no forno, guarnecer um prato de galinha, também tostada. Haveria amendoim bastante para produção de óleo. E, com o dinheiro angariado na venda da safra, alguns se contentariam em poder comprar, das mulheres no mercado, muitas latas de tuna fish, o atum pescado nas costas do Golfo da Guiné, e enlatado lá mesmo, pelo grupo local Mankoadzi. Ou cornedbeef, vindo da Inglaterra, mas produzido pela Swift, em Bagé, no Rio Grande do Sul — a disputada carne em lata, salgada e prensada Outros aumentariam seus fundos nos bancos locais; comprariam um Toyota, mais desejado do que o símbolo anterior, Land Rover; empreenderiam uma jornada pela colonial route, ou seja, viajariam para visitar parentes ou amigos em Londres.

4

O clima era de júbilo. Tudo estava se encaminhando para uma apoteose. Com esse tipo de sentimento, Yaa Caroline dormia um bom sono. O trio de amigos separou-se conforme o combinado. Kofí partiu na direção de um pequeno poço de água que, sabiam, não era frequentando por poderosos mamíferos. Havia, quilômetros adiante, um grande açude onde, numa sequência que só a natureza sabe dispor, com animais de tipos e antagonismos diversos, cada família se aproximava em horários diferentes para beber água: a hora dos leões, e de mais ninguém. Talvez de alguns pássaros, também. Zebras apareciam junto com girafas sem que esses dessem qualquer importância àqueles. Macacos se imiscuíam, sabiamente, com gente do peso de rinocerontes e hipopótamos. Aliás, pequenos pássaros são frequentes passageiros de dorsos imensos, desses gigantes quadrúpedes, sendo deles hospedeiros, comendo parasitas naturais de seus coros. Kofí, que já havia estado em Nairobi, no Quênia, recordou-se de um grande poço, nas proximidades de Mombaça, a cidade portuária daquele país. Os europeus haviam construído um paradouro, complexo com hotel e restaurantes, bem em frente ao açude. Era a atração maior dos turistas, que se revezavam, na rotina do conjunto hoteleiro, em ficarem ali sentados, saboreando a refeição do horário, num avarandado que dá para o poço. Saboreavam, face à impressionante vitrina da fauna africana, o café do desjejum; a cerveja de meio da manhã; o uísque da tarde e o jantar no pôr-do-sol, com seus matizes e tons, sombras e relevos, brumas, muitas vezes ‒ nostalgia, quase sempre. Uma visão privilegiada, qual deve ter tido Noé, vendo os animais entrando em sua arca. Vinham ao açude para matarem a sede ou banharem-se, atenuando a canícula, inúmeras espécies da rica e bela fauna savânica. A caminhada fora longa. Agora, bem próximo ao poço, Kofí examinou, com olhar atento, que animais estavam por perto, tendo uma visão difusa, que definia mais contornos do que imagens acabadas. O lusco-fusco da manhã apenas permitia que certos objetos e animais fossem identificados. Não havia nenhum vulto de veado. Boateng e Kuakú, juntos, já estavam a postos num outro extremo do poço. A distância entre eles, os três, não era muita. Qualquer emergência faria Kofí, sozinho, gritar e trazer em seu socorro os outros dois. Boateng curvou seu corpanzil e sentou numa pedra. Kuakú imitou a iniciativa, ouvindo a voz pausada e grave do amigo: — Vamos esperar um pouco, até clarear mais. Boateng ajeitou-se num canto onde a grande pedra se abria, como que para formar um banco natural. Deixou, ainda, bom espaço para que Kuakú fizesse o mesmo, com conforto. Por alguns instantes nada além do tímido chilreio, aqui e acolá, de poucas aves com hábitos madrugadores, ouvia-se na porção da savana onde estavam. — Tem um senhor brasileiro — iniciou Boateng, após uma espécie de pigarro, sinal indicador de que ia falar — que visitou o escritório do tio Edward lá em Acra, na semana passada. Parou ainda um pouco. Kuakú não disse nada, sabia-o assim. Iria continuar sua história, sem pressa. — Ele conversou sobre algo muito interessante. Tio Edward convidou este senhor a fazer uma exposição para o pessoal técnico do banco sobre as vantagens das máquinas de fazer tijolos de barro. São pequenas unidades, uma que recebe a cerâmica, mistura-a com água e, como um daquelas moedores de carne, expele um longo bloco de material, já bem plástico e úmido. Este bloco vai sendo cortado na medida ajustada e obtém-se tijolos maciços do tamanho do corte e das dimensões do bocal por onde é expelido. — O fascinante, Kuakú — prosseguiu, ainda sem pressa —, é que, mudados os bocais, conseguem-se tijolos com furos, exatamente iguais aos blocos de cimento. Na pausa, desta vez, Kuakú, que prestava redobrada atenção, ele filho de modesto empresário de Winneba, da área de fabricação de esquadrias em madeira, perguntou: — E que tipo de produto químico tem de ser usado? Ele explicou isto para Mr. Afriye? Mr. Afriye é como o tio Edward, presidente de um importante banco, era chamado, naquele país de pessoas extremamente formais. — Nenhum, respondeu imediatamente, sem qualquer pausa, demonstrando ele próprio estar motivado com o que ouvira. Prosseguiu, Boateng: — Nada de produto químico. Não vai ser criada qualquer dependência com o Brasil, senão nas peças de reposição das máquinas, quando estas se desgastarem. Empolgado, o que não fazia com que falasse mais rápido ou mais alto, apenas a fluência com que colocava para fora as idéias faria um amigo atento saber que ele estava entusiasmado, prosseguiu: — Kuakú, os tijolos, depois de saírem da máquina que tem um nome muito difícil de pronunciar - ensaiou mentalmente e transmitiu para seu atento ouvinte algum som parecido com maromba—, vão para galpões muito simples, cobertos até com palha de santa-fé, onde ficam secando. — Só isto? Pasmado indagou Kofí. — Não. Eles devem ser queimados, para adquirirem resistência. Para que fiquem fortes e não venham a ruírem como o das cabanas feitas em taipa. Maravilhado, Boateng prosseguia a descrição de uma modesta olaria rural que ele jamais vira em seu país. Tinha exata noção da estupidez que representava importar cimento e fazer cercas, cabanas, casas ou seja lá o que fosse com aquele material pozolânico nobre. E o barro estava lá, em muitas regiões, como logo adiante, na estrada que ia para Kumasi, sendo há milhares de anos usado por oleiros, que construíam pequenas obras de arte nativa ou simplesmente potes para flores, belas flores; ou água, bendita água. — Mas aí temos de usar óleo importado para queimar os tijolos. Boateng não disse nada. Deu a impressão, pelo silêncio, que a objeção de Kuakú era procedente. Instaladas as máquinas — que estariam acompanhadas de um gerador de força e luz — estas iniciariam a produção. Obtida uma primeira grande porção de tijolos, estes seriam postos a secar. Secos, seria feito um forno provisório com longa duração, sendo substituído, nas partes principais, com os tijolos queimados, fortes, então obtidos. — E o fogo, Boateng? — Lenha, do mato! No silêncio que se fez, duas linhas de pensamento se seguiram. Boateng vinha da escola politécnica e se encaminhava para um curso superior na área de engenharia, no exterior. Lembrou aulas práticas de complicadas unidades- piloto de indústria cerâmica de países como Itália, Espanha e Alemanha. Havia o impacto teórico e prático das coisas que lhes chegavam como doação, para estudo, de países desenvolvidos, mas que não levavam, por fatores diversos, a um objetivo prático. E lá ia ele, como outros tantos, também para o desenvolvido e rico Canadá, anos-luz longe da realidade de seu país. Kuakú, verdadeiramente, não compreendeu todo aquele acúmulo de informações técnicas, no alvorecer de um dia feito para emoções do corpo. Mas, filho de negociante, entendeu o necessário para saber que teria uma chance futura de, seguramente, fazer um bom negócio.

5

O cavalo já havia sido colocado na entrada da cidade. Branco, imóvel, muito grande, lá estava ele, a espera do vencedor. Aquele que primeiro trouxesse o veado. No interior das casas, as pessoas começavam a despertar para a lida diária, hoje, em verdade, especial. Um feriado. O prefeito, Yaw, já havia retocado o discurso que iria proferir — de improviso, diria — para um bom número de autoridades locais e das vizinhanças, tradicionais participantes desse tipo de acontecimento. Yaw, Bentum, Boateng, Dusantos e tantos outros eram da mesma geração. Pequenas diferenças nas idades, mas cresceram juntos e tiveram lá suas dificuldades naturais de relacionamento. Aquela coisa: Kofí, Boateng e Kuakú eram amigos. Três, não trinta e três amigos. Nem tampouco quatro. Eram três. Pois Yaw era contemporâneo, mas não era da turma, embora o universo da vila fosse, apenas, um microcosmo. Mas, nesse mundinho, há lugar para todos, é mera questão de saber identificar e ocupar o espaço disponível. Yaw fez assim e chegou a prefeito de Winneba. Não tinha sangue real. Sua família esteve sempre mais para vassalo do que para nobre, mas acabou completando seus estudos de sociologia na França. Tornou-se uma gloriosa exceção, pois era dos poucos que podia, nas voltas por Acra, entreter longas conversas, privar escritórios, frequentar residências, esticar em recepções de embaixadores de uma variedade de países vizinhos, todos ex-colônias da França ou da Bélgica. Essa tendência para conhecimentos ecléticos e humanísticos levaram Yaw a envolver-se sempre mais com os problemas do país. Dominava, por ter facilidade, praticamente todos os dialetos importantes de Gana: as línguas do grupo Akã, mais da metade do país; as língua do grupo Ewe, que compreendia, também, parte do estado soberano um pouco mais ao norte, o Togo, além das línguas do norte de Gana, terras já dentro do deserto do Saara. Falava, como sua, a língua dos gã, moradores da capital Acra. Sua chegada a prefeito de Winneba, na caminhada de um político de sociedades mais estáveis, levaria a grandes postos no futuro. Mas, Yaw estava, por enquanto, a preparar o discurso para seus conterrâneos, em bom fante, no dia do Deer Hunt, da caça ao veado. Na casa de Joseph seria a concentração maior. Joseph Kojô Nkansa-Boadi, um advogado muito alto e magro, nos seus quarenta anos, era egresso da Escola de Direito da Universidade de Acra. De gestos medidos, fala aveludada, Joseph movimentava-se com estudada mesura. Natural de Winneba, a ida para Acra prendera-o por lá. Trabalhava com outros dois sócios, numa empresa de advocacia. Respeitado como criminalista, arrancara louvores da imprensa, em memorável júri que teve cobertura ampla dos jornais e da recém instalada televisão local. Nos fins de tarde, encerrada a jornada do escritório, embarcava em seu velho Vauxal e frequentava os bares mais conhecidos do entardecer da cidade. Tomador emérito de cerveja, não podia ser rotulado como um contador de histórias. Neste pormenor, aliás, residia seu charme e apelo, que traziam sempre pessoas à sua volta. Vez que outra, após ouvir, sim, bons contadores de casos, desfazia as mesuras. Amaciava o cavanhaque, peça nem rara nem muito comum entre seus amigos, mas absolutamente única no contexto de sua imagem. Falava, então, e todos ficavam quietos. Joseph — o formal advogado no foro; o respeitado causídico em sua banca; elegante criminalista na barra, vestindo o traje preto e solene, com a peruca branca, qual um lorde inglês; preciso conhecedor do direito consuetudinário inglês/ganense — lá estava, feliz em seu verdadeiro mundo, prestes para ser nada disso. Pois a casa de Joseph — em verdade a casa de seus pais —, nesse amanhecer da festa do Deer Hunt, tinha a um canto quatro atabaques. Exatos cinco agogôs. Três berimbaus. Chocalhos. Bombos. Também, três cuícas. Alguns pandeiros e uns agués. Dois taróis. Pratos, muitos apitos e dois triângulos. Campânulas, flautas e afofiés, zambês e urucungos. Perto das onze da manhã os amigos começariam a chegar. Uns poucos de Acra, quase todos de companheiros de infância, dali de Winneba. Aqueles que, pelo resto da vida, iriam chamá-lo simplesmente de Koadji, ao invés de Mr. Lamptey, Apatú, um engenheiro, não conseguia esconder sua participação no festival. Transformara em carros alegóricos três microônibus da empresa de transportes de sua família. Pequenos caminhões, com bancos de madeira, sob um toldo de lona, conhecidos como trotrós, que fazem o transporte de passageiros e carga entre Winneba e outras cidades próximas, como Cape Coast, El Mina e, também, para pontos mais distantes, como Acra e Kumasi. Dusantus, um médico, de família tradicional local, os tabons, havia trabalhado até tarde da noite, ajudando amigos e amigas nas vestes que iriam usar, seguindo os carros alegóricos de Apatú. Dusantus era uma corruptela de dos Santos, nome que um ancestral seu havia trazido da Bahia, na jornada que muitos ex-escravos empreenderam de volta à África, do que resultou em algumas comunidades de brasileiros na Nigéria, no Daomé, hoje Benin, em Gana e outros pontos da costa oeste da África, também chamada, naquele tempo, de Costa dos Escravos. O hábito de, ao concordar, misturar ao dialeto local o 'tá bom, de nosso coloquial, valeu-lhes o apelido de tabons. O Dr. Dusantus era um médico humanitário, líder da comunidade e um ativo membro de seus momentos tristes: os funerais de jovens; dos alegres: os funerais de velhos; os casamentos e nascimentos, a revoada frequente dos amigos residentes em grandes cidades e, muito especialmente, o Deer Hunt.

6

Estavam, Boateng e Kuakú, sentados sobre a pedra, quando este aventou a seu pesado amigo que caminhassem mais um pouco. A sugestão foi aceita. Marcharam, já com a luz da manhã iluminando a paisagem da savana. Os pequenos arbustos, algumas árvores com rala copa e muito tufos de capim eram os obstáculos através dos quais a dupla seguia seu roteiro. Podiam caminhar sem um moderno walkie-talkie e, mesmo assim, saber que estavam procurando na área certa e, também, que continuavam à distância recomendada do solitário Kofí. Da raquítica e árida paisagem da savana foram, aos poucos, deparando-se com arbustos maiores e árvores mais copadas. Aproximavam-se, assim, das bordas do poço, onde a presença mais permanente da água alterara a paisagem. E, num desnível do terreno, onde a posição do sol, há pouco nascente, naquele instante propiciava uma grande área de sombra, foi que identificaram a inconfundível figura: Boateng, mesmo estando passos atrás de Kuakú, viu por sobre o ombro do amigo — que fez parar sem sussurro, sem nada, quem sabe, apenas, em transmissão de sentimento — a imagem que poderia compor um painel: a um canto, no alto, imponente árvore. Num ângulo aberto para a direita, o céu límpido, sem uma nuvem sequer; em verdade, levemente manchado por tons de dourado, de um sol que já havia se levantado e deixara um rastro na atmosfera, transpassando uma suave bruma. Ao canto, embaixo, nesse painel, contra o céu infinito, um verde mais vivo, de arbustos que se abasteciam de águas subterrâneas e que abrigavam, de esplêndida galhada, um animal de porte, bonito e perfeito. A certeza, para um observador, como eram Boateng e Kuakú, naquele momento, de que não se tratava de natureza morta vinha apenas da boca do veado: corpo todo imóvel, ruminava impassível, tranquilo, na mansidão do local e do momento, as ervas que recolhera daquela borda à árida savana. Examinaram as condições do terreno e concluíram que o animal, ao sentir suas presenças, iria correr exatamente na direção almejada: para onde Kofí se encontrava. Tudo fazia crer, então, que a dificuldade imaginada, nos preparativos, seria bem menor. Iria depender mais, se realmente o veado corresse de onde estava, da capacidade de Kofí de lançar-se. E executaram o plano. " O ruído fora ensurdecedor", diriam, em narrativas futuras, tanto Kofí quanto Kuakú. "Iniciamos — explicaria Kuakú — a repicar nossos agogôs, a soprar os apitos e bater com os pés no chão", para audiências que não faltariam, para o resto dos dias daquele contador. O barulho que irrompeu à distância fez Kofí saber que sua participação na aventura chegara. Ele, e não os outros dois, deveria encerrar a primeira fase da operação. Qual outro animal, nervos e músculos acionados, recordou, na fração de tempo que teve, detalhes que Bentum lhe havia ensinado. E, também, de todos os ensaios que realizou com os amigos, revivendo histórias de seu ídolo campeão. Vislumbrou à distância o veado em velocidade fantástica. Postou-se como seu pai havia sugerido. Surpreendeu por instantes o animal e, à distância correta, como um atleta numa participação olímpica, correu em angulo favorável ao rumo que vinha o animal; única forma de, por segundos, estar à mesma velocidade que ele e, consequentemente, caça e caçador estarem como que parados num dado momento. Num exato instante. Arremessou-se contra o animal. Aquela obra-prima da natureza dobrou descontrolados joelhos dianteiros e, na velocidade em que vinha, continuou, como um bólido sem rumo, até que se espalhou pelo chão. Moveu, então, nervosamente seus músculos no estertor da morte. Ficou, por fim, imóvel. Kofi estava abraçado a ele. Entre assustado e cheio de júbilo, examinou o estado de seu corpo: uns aranhões profundos e nada mais. Pareceu-lhe muito tempo, aquele em que ficou quieto, olhando o singularmente belo animal caído no chão, a seu lado, pescoço quebrado. Logo após, aos pulos, Kuakú se juntava a ele. Boateng, também satisfeito, arrastava-se mais atrás. Chegou até Kofí, abraçou-o virilmente, levantando-o ao alto, com sua força e energia. O veado fora abatido. Houvera tempo, logo a seguir, para louvores à vitória que consideravam como certa, desde que haviam se decidido participarem da competição. Agora tinham de voltar, com pressa, pois vencedor seria quem chegasse primeiro a Winneba, com o veado às costas, aonde estava o cavalo. Nem mesmo ao comum dos africanos, porque este é seu mundo, é fácil definir, se solicitado, a diferença entre amigo e irmão. Os estrangeiros que têm a oportunidade de coabitarem com esses seres recolhem um maravilhoso exemplo do valor desse tipo de relacionamento fraternal. Os homens costumam caminhar por suas ruas, suas casas, seus clubes de mãos dadas. Kofís e Kuakús, compartilham tudo o que possuem: do sapato ao melhor kentê, a roupa de vestir nas festas, funerais e aos domingos, a comida, as esperanças e os sonhos. Tudo pode e, caso necessário, deve ser partilhado. O sentido de amizade é tão admiravelmente profundo que se confunde com o de irmandade. Amigos são irmãos, não como figura de retórica, mas com um enlaçamento que supera, nas chamadas sociedades evoluídas, os vínculos sanguíneos. E os desvios naturais do comportamento humano, também presentes, confirmam a regra. Mas, a repulsa do meio, de tão forte, desestimula, já na formação do caráter, assim proceder. Ditadores militares, na exceção, confirmam a regra. Não foi de todo surpresa, assim, quando Boateng, após o regozijo pela vitória, curvou-se silente, frente ao veado, pondo seu corpanzil sobre os joelhos. Kuakú e Kofí olharam, estáticos, mas sem se admirarem. O animal foi erguido acima dos ombros de Boateng, que o passou para um ângulo às suas costas e repousou-o no pescoço. Levantou-se e, assim, também ao imóvel, mas ainda belo animal. — Vamos, disse, e começou a andar. Os dois, superado o momento, passaram a dançar e se agitar, seguindo, com passos ritmados, Boateng e o veado.

7

Manhã alta. Winneba, estranhamente, parecia vazia. Indicativo de que eventos estavam por ocorrer era um palanque ornado com fitas e bandeirolas nas cores nacionais. O próprio escudo com o brasão das armas de Gana confirmava o caráter festivo e oficial do que iriam celebrar. Mas não havia, ainda, muitas pessoas nas ruas. Estavam, agora, há pouco mais de um quilômetro do que se poderia chamar de subúrbios de Winneba. Winneba's outskirt, eles diriam. Nesse recanto, onde a cidade não havia chegado, nem sob a forma de sub-habitações, estavam, naquele exato momento, quase todos os que faltavam nas ruas da cidade. Quando Kofí, o filho de Bentum, apareceu no horizonte, agora ele carregando o veado nos ombros, formando uma figura composta de homem, animal e muitos cornos, ladeada por dois enfezados ritmistas, sentiu-se que, em verdade, a farra começara. Jovens na maioria, velhos e crianças, todos, como que sob o comando de uma ordem única, iniciaram desabalada correria, do jeito que podiam, em direção aos heróis da manhã. Poucos foram os minutos que se seguiram, até que a trinca estivesse envolvida por, praticamente, toda Winneba. Foram postos nos ombros da multidão ensandecida. O veado desapareceu entre ardorosos torcedores que disputavam o direito de carregá-lo também. Muitos apitos, muitos agogôs. Amigos, ao som de berimbaus, rodopiavam e balançavam. Em Winneba, agora, as coisas começavam a tomar forma e corpo. Mr. Lamptey não usava nenhuma peruca branca de lorde inglês. Não. Era Koadji nos seus melhores dias. Arranjara nada menos do que um velho uniforme de guarda de trânsito, muito parecido com um bobby da Inglaterra, com luvas brancas, apito e tudo mais. Outros amigos também se alojaram em fantasias que caricaturavam o dia-a-dia do homem comum: enfermeiros, médicos, bombeiros, farmacêuticos, dráculas, telefonistas, operadores de televisão, locutores de rádio, com toscas miniaturas de câmeras, microfones e telefones. Muita cerveja, apetachi, destilado da palmeira, gim e uísque, neste quase fim de manhã, rolava enquanto o ritmo já se fazia aceso, prestes para transbordar, sair porta afora, ganhar a Main Street até alcançar a Broad Street, onde estava o palanque. O engenheiro Apatú, mais discreto, mesmo no fervo de tais momentos, contentava-se em servir de motorista de um de seus trotrós, o principal, em verdade, aquele que carregaria, cheia de graça, num vestido vaporoso feito para a ocasião, Yaa Caroline, a Rainha do Deer Hunt, daquele ano. O prefeito Yaw — vestido a rigor, num terno de três peças: calças, paletó e colete, malgrado o calor equatorial, já naquela parte do dia — dirigia-se para a entrada da cidade. Iria receber o Chefe Paramount de Winneba. Outra das instituições de grande prestígio no país é a chefia. Absolutamente hereditária, tornam-se chefes os descendentes da mesma linha e com uma particularidade. A sucessão é matrilinear. O chefe será sempre homem. O filho primogênito da irmã mais velha do chefe herdará o trono. Na tradição milenar daqueles povos, como em outros da antiguidade, a maternidade é uma certeza. A linhagem assim se mantém íntegra. Carregado num palanquim, por honrados servos da casa da chefia, é o chefe permanentemente ventilado, com abanadores gigantes, formados por tecidos, penas ou plumas, cheios de vida e de cor. Compõem, ainda, o séquito do chefe, tocadores de atabaques que mantêm um ritmo sóbrio, enquanto o cortejo avança. Envolto em roupas multicoloridas, um verdadeiro arco-íris, o grande Paramount recebeu, sem alterar muito sua condição majestática, a Yaw. Umas gentilezas em fante foram trocadas e o prefeito passou a acompanhar a primeira autoridade, levando-a para o palanque principal, onde outros dignitários se encontravam. Bentum e Boateng, sênior, já sabiam, neste momento, do sucesso de seus filhos. Estavam cada um em suas respectivas casas. Mas as notícias logo se espalharam. Ambos iriam, por motivos diversos, assistir do palanque ao desfile, não como autoridades, mas como notórios da cidade.

8

O quadro estava composto. Kofí foi colocado no lombo do cavalo. O monumento equestre media cerca de três metros de altura. Muito esparramado, tinha suas pernas abertas, excessivamente largas. A cauda, também longa, era um simulacro de crina. As patas apoiavam-se em dois eixos de madeira, no fim dos quais havia quatro rodas em madeira. Era, como numa edição muito antiga do Tesouro da Juventude, igual à gravura que retratava o Cavalo de Tróia. Kofí — belos dezoito anos! — montava com a mais genuína alegria um cavalo de madeira. A seguir, cavalo e cavaleiro começaram a se deslocar, pela Broad Street, em direção ao palanque. Kofí, seu veado, seu cavalo de madeira, empurrados por empolgados meninos como ele próprio, seguiam para a glória. Atrás vinham já Joseph e seus amigos em ferrenha batucada. Semelhante a uma narrativa de cenário bem brasileiro, por Rubem Braga, na crônica Congo: " batem as 'barricas' e a caixa, ronca uma cuíca imensa, negra, feita de casca de um só tronco de árvore, tine o 'ferrinho', tocam os 'cassacos' seu reco-reco..." Outros blocos também seguiam aquele, bem como os carros alegóricos, com motivos diversos: até um Cristo, como o do Corcovado, no Rio de Janeiro, representava uma homenagem aos brasileiros. Havia noutros carros inhames e mandiocas gigantes, grandes ramadas de amendoim, coroas verdes com mamães, uma cascata com grãos de milho, publicidade primitiva de pequenos estabelecimentos comerciais da cidade e, naturalmente, a onipresente Coca Cola. Um deles, simples como o conjunto todo, trazia Yaa Caroline a abanar para a pequena multidão postada nas ruas, no modelo que as revistas ilustradas, o cinema e, também agora, a televisão ensinaram. Qualquer pessoa no palanque principal tinha visão de, praticamente, todo o desfile, pois a rua era longa, o terreno plano e a massa festiva não era das maiores. Foi então que se deu um diálogo em português: — Me sinto nas ruas da Bahia, durante o carnaval. — É, a origem do carnaval puro, brincalhão de rua, da Bahia, está aqui. Disse o outro e arrematou: Antes dos trios elétricos, o que se via em Salvador era exatamente isto. Os mesmos instrumentos, as mesmas fantasias, o mesmo estilo de brincar sem compromisso, a não ser com a folia. — Eu sou carioca — prosseguiu o primeiro —, vivo agora em São Paulo. Mas sou medularmente carioca. E estou sentindo no sangue uma vontade danada de descer daqui e cair na gandaia. — Por que não? — Sorrindo, perguntou-lhe o embaixador do Brasil em Gana. — E por que não? Retrucou Ronaldo Baptista, que não perdeu mais tempo. Desceu do coreto e caiu na farra. Juntou-se, por mera coincidência, a Joseph, que não conhecia, e saiu a dar passos que o ganense repetia sem dificuldade, iguais aos dos sambistas das escolas de samba do Rio de Janeiro. Agogô nas mãos, lá se foi Baptista com seu povo, ele um mulato elegante, simpático e envolvente comerciante internacional. No hotel Ambassador, certa manhã, em seu quarto, Baptista, meio morador de Acra, de Lagos, de Dacar ou de onde os negócios das empresas que representava exigiam, dizia com ardor, respondendo ao senhor brasileiro que estava vendendo olarias para o banco do tio de Boateng: — Não tomo a pílula e não temo os mosquitos. Referia-se a comprimidos de quinino, do tipo Nivaquine e outros amplamente usados entre os residentes temporários daquela região. Mosquitos, alguns, podiam-se ver no rodapé da parede de seu quarto. — Mas não temos anticorpos para a malária... ninguém tem. Aqui esse negócio é endêmico. Eles estão preparados. É como ter uma gripe. Curam-se com chazinhos e ervas. Nós precisamos de soro, quinino e sorte, muita sorte para não morrer contrapôs o interlocutor. — Acontece, meu chapa, arrematou com ênfase, que eu já sou africano! Mentalmente sim, até na aparência, quando vestia, nas ocasiões informais do dia-a-dia, policromáticas camisas africanas, ou quando comparecia, alto e de porte majestoso, a encontros sociais vestindo longos, decorados, brancos ou negros cafetãs; bubus, no Senegal, Costa do Marfim e outros; kentê, em Gana. Seu corpo, porém, apesar da origem, já era, há algumas gerações, brasileiro, de zona não endêmica. Morreu, poucos meses após, de malária, num equipado, porém despreparado, hospital de São Paulo.

9

A tarde já ia longa. As casas, na imagem que a projeção de suas sombras mostrava, estavam esparramadas, muito compridas, já escuras em certos ângulos. O sol se punha outra vez em Winneba, que não era mais a mesma do meio-dia. Os enfezados, digamos, sambistas, haviam deixado suas marcas pela Broad Street e começavam a ingressar no mundo da saudade. Pequenos grupos resistiam, já em suas casas, ao fim-de- festa. Mr. Lamptey, ainda era um aldeão, adernado a um canto, dormindo, assimilando a ingestão alcoólica; em verdade, preparando-se para some few nasty things, do amanhã, como ele diria, sorrindo, cofiando seu cavanhaque, numa alusão à monotonia dos dias pós Deer Hunt, o Dia da Caça ao Veado e do grande Carnaval de Winneba. O veado, conquistado com louvor por Kofí, não tinha mais imponência alguma. Era, agora, carne que alimentaria algumas pessoas. Não iriam, sequer, seus cornos, a real galhada, ornamentar alguma parede. Quem sabe acolheriam ervas medicinais, se recolhidos por alguma avozinha. Tudo estava acabado, restando, apenas, recordações e narrativas que, diferentemente de ontem, quando os jovens ficavam na vila sem se afastarem para cursos em outras cidades, e o tema se mantinha permanente o ano todo. Iriam, agora, se consumir mais rápido, com a velocidade do tempo que já começava a assim passar, também, em Winneba. Boateng se encontrava de malas prontas. O Canadá lá estava de portas abertas para sua formação. Kuakú, este sim, ficaria para manter viva a lenda. Kofí, seis meses depois, conseguiu-lhe o senhor das olarias, veio para o Brasil, estudar medicina. Já, em Porto Alegre, em fluente português, dois anos depois, Kofí se divertia: — Então, atrás de umas macegas, apontei a arma, uma bela espingarda, ante os olhares pasmos de Kuakú e Boateng e, bum, acertei no veado, no exato momento em que, qual um dançarino de balé, pulava bem alto. Caiu como um fauno...

FIM

O fato: Assisti, em 1978, o Deer Hunt, em Winneba.